Tecnologia é Ferramenta, Não Muleta

Última atualização: 18 de junho de 2025
Tempo de leitura: 5 min

Dias atrás, li um estudo recente da Microsoft em parceria com a Carnegie Mellon University sobre o uso de inteligência artificial generativa e seus impactos no pensamento crítico humano. A conclusão me pareceu, à primeira vista, alarmante: pessoas que usam IA para realizar tarefas rotineiras ou de baixo risco tendem a reduzir o uso do pensamento crítico. Os pesquisadores testaram 319 participantes e perceberam que aqueles que mais confiavam na IA também eram os que menos questionavam suas respostas, demonstrando menor capacidade de julgamento e menor autoconfiança para resolver os desafios sozinhos. O estudo alerta para o risco de que a dependência excessiva da IA possa atrofiar a nossa chamada musculatura cognitiva, deixando-nos intelectualmente despreparados para lidar com exceções, incertezas e decisões complexas. Confesso que o conteúdo me fez refletir, mas não pelo susto. O que me inquietou mesmo foi o eco de um velho padrão: tecnologia é ferramenta, não muleta.

Lembrei do meu pai, que se recusava a me deixar usar calculadora quando eu era pequeno. Dizia que, se eu não soubesse a tabuada de cor, não saberia fazer nada na vida. Ele me obrigou a fazer curso de datilografia e a teclar com os dez dedos. E mais, a minha carteira de motorista tinha que ser da categoria mais completa porque, segundo ele, se eu precisasse um dia, poderia trabalhar como taxista, motorista de caminhão ou ônibus. Não era exatamente o que eu queria da vida, mas obedeci. E não porque achasse que ele tinha razão sobre o futuro, mas porque entendi que, para ele, o mundo era incerto demais para depender apenas de sonhos. Era preciso estar pronto para qualquer coisa. Com o tempo, percebi que a desconfiança dele com a calculadora era a mesma que hoje muitas pessoas sentem em relação à IA. O medo não está na ferramenta, ele está no que acreditamos que ela possa nos tirar: o controle, a autoria, a relevância.

Quando vemos um estudo dizendo que a IA reduz o pensamento crítico, precisamos nos perguntar: o que é, afinal, pensamento crítico? Se for a capacidade de memorizar padrões, seguir regras ou repetir procedimentos, então sim, talvez a IA esteja nos emburrecendo. Isso já aconteceu com as redes sociais. Mas se pensamento crítico for a habilidade de duvidar, de fazer perguntas, de entender os limites da ferramenta, então a IA, quando bem compreendida, não atrofia nada. Pelo contrário, ela amplia. O estudo mostra que pessoas que se consideravam mais capazes de realizar as tarefas sozinhas usaram mais pensamento crítico, mesmo quando tinham acesso à IA. O problema não está, portanto, na inteligência artificial, mas na ausência de confiança intelectual que muitos já carregam antes mesmo de começar a usá-la. É aí que precisamos lembrar: tecnologia é ferramenta, não muleta.

É curioso como somos bons em reconhecer ameaças, mas lentos para identificar oportunidades. Quando os primeiros corretores ortográficos surgiram, disseram que iríamos esquecer como se escreve. Quando o GPS se popularizou, disseram que iríamos perder a noção de direção. Quando os smartphones apareceram, alertaram que iríamos parar de conversar. E agora, com a IA, voltamos ao mesmo dilema: será que ela vai nos substituir? O que poucos percebem é que a substituição acontece não quando a IA executa uma tarefa melhor do que nós, mas quando nós decidimos abrir mão da reflexão, da intenção, do discernimento. O uso cego da IA não revela sua capacidade, ele revela a nossa preguiça.

Mas há outro lado. A IA também está nos obrigando a revisar o que consideramos essencial no raciocínio humano. Pensar criticamente hoje não é fazer conta de cabeça, mas saber identificar um viés algorítmico. Não é decorar fatos, mas saber se uma fonte é confiável. Mais uma vez, eu lembro que esse problema aconteceu com as redes sociais e não com a IA. A inteligência útil mudou de forma. E talvez o que esteja nos deixando desconfortáveis não seja a ameaça de sermos superados, mas o fato de que muitos de nós ainda nem chegaram a desenvolver as competências que o novo mundo exige. O que antes era considerado sabedoria pode ter se tornado apenas acúmulo de técnicas obsoletas. A IA não atrofia nossa mente, ela revela o que já estava desatualizado.

E aqui reside a provocação mais profunda: não é a IA que emburrece. Somos nós que, muitas vezes, nos contentamos em não pensar. Especialmente quando estamos com pressa. O estudo mostrou que, sob pressão de tempo, o pensamento crítico diminui. Mas quando o risco é alto, ele volta. Isso significa que ainda temos a capacidade, só não a exercemos quando achamos que não vale a pena. É aí que mora o perigo. A repetição da confiança cega em sistemas que não compreendemos, como as redes sociais, pode nos levar a um estado de automatismo em que tudo parece funcionar, até que uma exceção ocorra. E quando ela ocorre, não sabemos mais o que fazer.

É por isso que a própria Microsoft, a Carnegie Mellon e a OMS recomendam uma postura crítica e vigilante ao usar IA. Não para negá-la ou temê-la, mas para usá-la com consciência. A IA pode ser aliada, mas não substituto da cognição humana. O problema é que, para muitos, isso exige uma reinvenção. Exige reaprender a pensar, a desconfiar, a interpretar, a decidir. E isso dá trabalho.

Talvez meu pai tivesse razão em parte. Não porque era errado usar calculadora, mas porque era importante saber fazer a conta antes. Não porque eu precisasse ser datilógrafo, mas porque digitar com dez dedos me tornava mais rápido, mais atento, mais treinado. Ele não queria que eu dirigisse ônibus. Queria que, se um dia não houvesse ninguém para me levar, eu soubesse para onde ir. Hoje, com a IA, o desafio é parecido. Precisamos garantir que, mesmo com todas as ferramentas, ainda saibamos pensar. Ainda saibamos errar, revisar, questionar. Porque a maior ameaça da inteligência artificial não é que ela nos supere, mas sim que nos acomode. Por isso, sempre reforço: tecnologia é ferramenta, não muleta.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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