Simulações e Conexões

Última atualização: 15 de outubro de 2025
Tempo de leitura: 5 min

O que começa parecendo uma simples coincidência logo revela ser uma arquitetura invisível de Simulações e Conexões que une ideias, fenômenos e desconfortos que percorrem nossas conversas contemporâneas sobre inteligência, percepção e realidade. Em um mundo onde a IA redesenha as bases da ciência, ajudando a descobrir novos materiais, medicamentos e soluções energéticas, parece irônico que a maioria das pessoas ainda associe inteligência artificial a chatbots que completam e-mails ou sugerem posts para redes sociais.

Mas essa é apenas a primeira dobra dessa trama. A mesma sociedade que se encanta ou se assusta com o poder dessas máquinas esquece de olhar para o próprio espelho, aquele que denuncia que, muito antes dos algoritmos, fomos nós os grandes mestres da ilusão. Nossa consciência, afinal, nunca foi uma janela límpida para o mundo, mas uma engenhosa peça de teatro biológico que edita, preenche lacunas, distorce e, muitas vezes, inventa lembranças para garantir a sobrevivência de um eu coerente, ainda que imaginário.

Não por acaso, as máquinas que hoje produzem textos, imagens e respostas com tamanha fluidez não estão criando uma forma de engano. Elas apenas escalam e automatizam os velhos truques da cognição humana. A boneca de vinil que acalma uma mãe enlutada não é muito diferente do modelo de linguagem que, sem entender nada, responde com empatia simulada a uma pergunta existencial. Ambos são cópias afetivas de algo ausente. Ambos operam na tênue fronteira onde o que importa não é a autenticidade do emissor, mas a autenticidade da experiência emocional gerada. Afinal, se o conforto é real, por que nos importamos tanto se o objeto que o provoca é uma simulação?

Mas esse jogo de espelhos revela algo ainda mais perturbador quando nos damos conta de que as próprias bases de treinamento dessas inteligências são enviesadas, centradas em uma visão de mundo que reflete menos de 15% da população global. Os modelos que deveriam traduzir a diversidade humana acabam apenas replicando os padrões culturais, linguísticos e epistemológicos de uma elite digitalizada, ocidental, rica e alfabetizada. Em meio a essas Simulações e Conexões, o que parece ser um problema técnico, na verdade, escancara uma questão civilizatória: quem define o que deve ser lembrado, o que deve ser esquecido e, sobretudo, o que deve ser considerado verdade dentro dos sistemas que organizam o conhecimento do presente e do futuro?

É curioso perceber que, enquanto discutimos a inclusão da IA nos currículos escolares, como se a simples exposição à tecnologia garantisse compreensão e domínio, esquecemos que o próprio conceito de ensinar está sendo desafiado. Porque não basta inserir a IA como disciplina se o próprio educador não sabe mediá-la, questioná-la e, principalmente, usá-la para fomentar pensamento crítico.

Na prática, formamos gerações que sabem pedir à IA que escreva uma redação, mas não sabem avaliar o que há de implícito, enviesado ou ausente na resposta recebida. E isso não é um problema isolado da educação. É o mesmo fenômeno que atinge os programadores, que de repente percebem que escrever código, por décadas tratado como ato quase sacerdotal, virou tarefa trivial, pulverizada, automatizada. O que resta, portanto, não é dominar a linguagem das máquinas, mas dominar a arte de formular boas perguntas, de navegar no caos, de compreender sistemas, contextos e impactos.

E é justamente nesse ponto que a IA nos obriga, com desconforto crescente, a revisitar o significado de pensar. Porque, se por um lado ela nos entrega respostas com uma precisão que beira o mágico, por outro ela faz isso dentro de caixas-pretas cognitivas, ocultando os caminhos, os critérios, as premissas que levaram àquela conclusão. Perguntamos, ela responde. Mas o que acontece entre o estímulo e a resposta permanece envolto em opacidade. E o desconforto que isso gera não é apenas técnico, mas ético, social, quase existencial. Porque aceitar a resposta sem acesso ao raciocínio que a produziu é, de certo modo, aceitar terceirizar não só a decisão, mas o próprio sentido do real.

O que une, de forma quase poética, os avanços discretos da IA na ciência, os bebês reborn, a crise da educação, a obsolescência do código e a emergência das Reasoning AIs não é apenas a tecnologia em si. É a constatação de que, em cada uma dessas esferas, estamos lidando com simulações que nos forçam a confrontar a fragilidade das nossas próprias simulações internas. O que é um dado, afinal, senão uma representação codificada de algo que julgamos ser real? O que é um algoritmo de recomendação, senão uma peça de teatro estatístico encenando a ilusão de que sabe quem somos? O que é um professor que ensina IA sem compreendê-la, senão um espelho das sociedades que adotam tecnologias sem entender seus pressupostos nem seus efeitos?

Talvez o desconforto não venha do fato de que as máquinas estão ficando mais inteligentes, mas do fato de que estamos sendo obrigados, pela primeira vez, a olhar com clareza para os mecanismos que sempre estruturaram nossa própria inteligência. E o que vemos não é exatamente confortável. Em meio a Simulações e Conexões, percebemos que nossos cérebros operam com dados incompletos, enviesados, culturalmente situados. Vemos que nossas narrativas sobre o que é ser humano, ser consciente, ser racional, são tão frágeis quanto qualquer modelo probabilístico rodando em um cluster de servidores. Vemos que o que chamamos de realidade nunca foi um fato objetivo, mas uma construção negociada, emocionalmente validada, afetivamente performada.

No fim das contas, a IA não está apenas redesenhando o futuro. Ela está expondo, com uma precisão desconcertante, as costuras malfeitas do nosso passado. E se isso assusta, é porque, talvez, nunca estivemos realmente prontos para reconhecer que somos, nós mesmos, os primeiros algoritmos.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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