Inteligência Invisível

Última atualização: 11 de junho de 2025
Tempo de leitura: 5 min

A inteligência artificial deixou de ser um tema do futuro para se tornar uma engrenagem invisível que já move a realidade em quase todas as direções. No entanto, essa transformação é tão sutil e ao mesmo tempo tão abrangente que escapa ao olhar comum, que ainda associa IA a robôs falantes ou assistentes digitais que respondem a perguntas simples. A verdadeira revolução, no entanto, acontece por baixo da superfície: nos dados que não vemos, nos processos que não questionamos, nas decisões que acreditamos serem humanas. Em 2024, a IA não apenas avançou, ela acelerou, condensou ciclos tecnológicos, alterou a ordem de poder entre países e empresas e, talvez o mais intrigante, começou a reformular o que entendemos por conhecimento.

Poucos perceberam, por exemplo, que o custo de uso de modelos como o GPT-3.5, que em 2022 era de cerca de 20 dólares por milhão de tokens, caiu para apenas sete centavos em outubro de 2024. Uma redução de mais de 280 vezes em menos de dois anos. Isso equivale a dizer que a capacidade de consulta e geração de conhecimento se tornou praticamente gratuita, o que não aconteceu com nenhum outro ativo informacional ao longo da história. Essa queda vertiginosa no custo está viabilizando que pequenas empresas, governos locais, ONGs e até indivíduos comuns acessem ferramentas de inteligência que, até recentemente, estavam restritas aos maiores centros de pesquisa e às big techs.

Mas não é só o acesso que mudou. A performance dos modelos também escalou em ritmo impressionante. Novos benchmarks lançados em 2023, como o SWE-bench, que avalia a capacidade de resolver problemas de programação reais, revelaram que os modelos melhoraram seu desempenho de 4% para 71% em apenas um ano. Em outras palavras, a IA deixou de apenas sugerir códigos para de fato resolvê-los com eficácia superior à humana em cenários limitados por tempo. Essa Inteligência Invisível já começou a migrar para tarefas de criação de vídeo, diagnósticos clínicos, geração de dados sintéticos e planejamento de ações complexas.

Ao mesmo tempo, enquanto o público geral ainda debate se a IA vai “roubar empregos” ou se é “ética”, os países que entenderam o jogo estão investindo em infraestrutura em escalas bilionárias. A Arábia Saudita lançou um programa de 100 bilhões de dólares chamado Projeto Transcendência. O Canadá destinou 2,4 bilhões. A China criou um fundo de 47,5 bilhões só para semicondutores. Não se trata mais de acompanhar tendências, mas de disputar soberania. A IA se tornou uma questão de Estado. Os EUA, por exemplo, introduziram 59 novas regulações federais sobre IA apenas em 2024, mais que o dobro do ano anterior. E 42 agências diferentes participaram desse movimento. Isso mostra que a tecnologia não é mais uma vertical isolada, mas transversal a tudo: economia, justiça, segurança, saúde e cultura.

No campo científico, a IA já alterou a lógica da descoberta. Dois prêmios Nobel foram entregues em 2024 a pesquisas impulsionadas por inteligência artificial: um em física, pelo avanço nos fundamentos das redes neurais; outro em química, pela aplicação da IA no dobramento de proteínas. O reconhecimento da IA como coautora do conhecimento é, por si só, uma ruptura epistemológica. Essa Inteligência Invisível está presente em modelos como o AlphaFold 3, que não apenas preveem estruturas moleculares, como expandem os limites do que a biologia acreditava ser computável. Isso muda radicalmente a forma como entendemos doenças, criamos medicamentos e estruturamos políticas públicas de saúde.

Entretanto, o fenômeno talvez mais inquietante seja a velocidade com que os modelos abertos estão se aproximando da qualidade dos modelos fechados. Em janeiro de 2024, a diferença de desempenho entre os dois era de 8%. Em fevereiro de 2025, já era de apenas 1,7%. Isso significa que a base tecnológica que antes era monopólio de algumas empresas agora começa a ser replicada em laboratórios independentes, universidades e comunidades descentralizadas. A inteligência ainda será controlada, mas poderá ser treinada, ajustada e aplicada de diversas formas.

Ainda assim, há zonas cinzentas. A quantidade de incidentes envolvendo IA aumentou 56% em um único ano. Casos de deepfakes, manipulação de eleições e discriminações automatizadas estão se tornando mais frequentes e mais sofisticados. Curiosamente, muitos desses sistemas foram projetados com mecanismos para evitar viés explícito, mas continuam reproduzindo preconceitos implícitos. A IA, ao que parece, não só copia o conhecimento humano, como herda as nossas contradições. Isso torna ainda mais urgente o debate sobre o que significa “responsabilidade” em uma era em que algoritmos podem moldar narrativas inteiras sem que percebamos sua origem.

O público, por sua vez, começa a oscilar entre o deslumbramento e a desconfiança. Uma pesquisa global mostrou que 83% dos chineses acreditam que a IA será mais benéfica do que prejudicial. No Canadá e nos Estados Unidos, essa confiança mal ultrapassa os 40%. Mesmo assim, o otimismo está crescendo, especialmente em países que antes eram mais céticos. O motivo pode ser o reconhecimento tácito de que a IA já está por toda parte, quer saibamos ou não. Como uma nova camada da realidade, essa Inteligência Invisível se infiltra nos sistemas de transporte, nas ferramentas de comunicação, nos diagnósticos médicos e até nas decisões financeiras pessoais. Ela está lá, mesmo quando não é vista.

O que escapou à percepção coletiva foi a mudança de escala. A IA deixou de ser apenas uma ferramenta. Tornou-se uma plataforma cognitiva sobre a qual estamos reconstruindo a sociedade. Não é mais uma questão de se adaptar à tecnologia, mas de perceber que já estamos dentro dela. E que, se não formos capazes de entender essa transformação agora, será ainda mais difícil influenciá-la depois. Porque a inteligência do futuro não será artificial. Ela será invisível.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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