Última atualização: 13 de abril de 2021
Tempo de leitura: 4 min
Espelho, espelho meu… Os contos de fadas costumavam ser o primeiro contato das crianças com a literatura, muito antes delas aprenderem a ler. Um universo lúdico que permeia histórias vindas de outros tempos. Eles surgiram para disseminar valores culturais. São histórias contadas de pai para filho e, dessa maneira, acabaram perpetuando-se no imaginário coletivo. Começaram a ser registradas em livros na Idade Média, quando a criança começou, de fato, a ser tratada como criança, pois até então não havia grandes distinções entre elas e os adultos.
Além de estimular a imaginação, esse tipo de história tinha o propósito de ensinar bons valores e dar exemplos práticos e fáceis de entender. “Pinóquio” abordava os problemas acarretados pelas mentiras, “Chapeuzinho Vermelho” falava sobre não se deixar enganar pelas aparências e jamais dar ouvidos a estranhos, a “Bela Adormecida” contava como superar obstáculos e que tudo tem seu tempo, e assim por diante. Mas quero chamar a atenção para a história da “Banca de Neve”, principalmente na parte que a rainha má pergunta para o espelho mágico se ela é a mais bela do reino, e obtinha a resposta negativa dizendo que outra era ainda mais bela…
Contos de fada parecem desatualizados, mas vivemos atualmente uma realidade não muito diferente. Nunca foi usual fazer perguntas para o espelho esperando respostas, mas o avanço tecnológico nos permite fazer perguntas para outros objetos, os chamados assistentes virtuais, baseados em inteligência artificial, como “Cortana” (Windows), “Alexa” (Amazon), “Siri” (Apple), “Bia” (Bradesco), “Cris” (Crefisa) e “Lu” (Magazine Luíza), só para citar alguns. E continuamos esperando a resposta que nos agrada. Quando somos contrariados, negamos ou procuramos encontrar uma forma de eliminar o desconforto. Não gostamos do contraditório e somos apaixonados por tudo que está alinhado com os nossos pensamentos e desejos.
Criamos sistemas que potencializam conceitos que reforçam os iguais. Vivemos em uma bolha onde aparentemente só existe um caminho: aquele definido pelo grupo ao qual nos identificamos. Todas as outras opções parecem desprezíveis. O volume de informações disponíveis eliminou o tempo dedicado à reflexão. Queremos cada vez mais e mais, muitas vezes sem saber o que fazer com todo esse material depois. Em uma era onde não conseguimos identificar o que é espontâneo, valorizamos conteúdos tendenciosos, criados por manipuladores profissionais pagos, que ingenuamente chamamos de influenciadores.
Vivemos em uma sociedade estranha. Recentemente li o livro “The WEIRDest People in the World” do antropólogo Joseph Henrich, atual Chefe do Departamento de Biologia Evolutiva Humana da Universidade de Harvard. Na obra, Henrich mostra como diversos estudos foram, nos últimos dois séculos, baseados em experimentos, estudos, pesquisas e questionários feitos com 96% de estudantes universitários de sociedades do norte da Europa, América do Norte e Austrália. O resultado é que temos uma visão completamente distorcida sobre a natureza humana, e o que definitivamente somos como civilização. Henrich cunhou o acrônico WEIRD – “esquisito” – para descrever essa visão bastante particular de mundo, só aplicável a uma pequena elite de pessoas ocidentais, educadas, de sociedades industrializadas, ricas e de países democráticos (Western, Educated, Industrialized, Rich e Democratic). Trata-se de uma descrição de pessoas que sequer são maioria dentro das próprias democracias ocidentais.
Porém, muitos valores passaram a ser apresentados como se fossem traços universais. É fundamental então entender as origens e equívocos destas concepções, idealizadas e ingênuas que são incapazes de nos oferecer recursos conceituais para tratar de questões como desigualdades provenientes de explorações passadas, racismo, falta de representatividade no poder, influência do dinheiro etc. Todos esses fenômenos ocorrem em sociedades cuja evolução política passa longe de qualquer ideia de consenso, princípios de justiça e deliberação pública. Recentes experiências no uso de inteligência artificial comprovaram isso, mas nós achamos que os algoritmos estão errados e “corrigimos” para que se comportem como achamos que realmente somos.
As histórias infantis poderiam ser usadas para educar adultos hoje em dia. Em alguns momentos parece que voltamos a idade média, pois não conseguimos distinguir diferenças entre adultos e crianças. O que mudou nos tempos que chamamos de modernos, é que são os mais velhos e aparentemente experientes que tem comportamentos infantis. As “fake news” produzidas por profissionais especializados nos forçam a convivermos com as mentiras. As redes sociais nos enganam pelas aparências. A tecnologia nos condicionou ao imediatismo. O deep fake nos confunde a um ponto que não conseguimos distinguir o que é realidade e o que é fantasia. O resultado disso é que muitas vezes quando olhamos para o espelho, independente da resposta esperada, não gostamos da imagem que vemos.
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