A Ilusão que Chamamos de Consciência

Última atualização: 17 de setembro de 2025
Tempo de leitura: 5 min

Tememos que a inteligência artificial nos engane. Como se isso fosse algo novo. Esquecemos que o primeiro grande mestre da ilusão foi o próprio cérebro humano. Há uma tendência contemporânea de tratar a IA como uma espécie singular de manipuladora da percepção, como se fosse a primeira força na história capaz de nos iludir sistematicamente. Essa visão revela uma amnésia coletiva sobre uma verdade desconfortável: nossa mente é um sistema de processamento fundamentalmente falível, projetado para nos enganar desde que desenvolvemos A Ilusão que Chamamos de Consciência.

Considere o seguinte paradoxo. Enquanto nos alarmamos com a capacidade da IA de simular empatia e produzir respostas convincentes, convivemos tranquilamente com o fato de que nossos próprios cérebros inventam memórias, distorcem percepções e constroem narrativas fictícias sobre quem somos e por que agimos. Cada vez que você “lembra” de algo, está literalmente reconstruindo essa lembrança, inserindo elementos que talvez nunca tenham existido. O cérebro não registra fatos como uma câmera. Ele edita, adapta e preenche lacunas como um roteirista criativo trabalhando com fragmentos imprecisos.

A neurociência mostra que cerca de 40% do que enxergamos não vem dos olhos, mas de projeções internas baseadas em experiências passadas. Seu cérebro preenche espaços vazios o tempo todo, produzindo uma versão editada da realidade que você aceita como se fosse absoluta. Isso explica por que duas pessoas podem testemunhar o mesmo evento e recordar coisas diferentes. Não é que uma esteja mentindo. Ambas estão descrevendo realidades neuralmente construídas, cada uma fiel ao seu próprio sistema de distorção.

Os ilusionistas profissionais compreendem essa vulnerabilidade melhor do que muitos pesquisadores. Eles não desafiam as leis da física, apenas exploram os atalhos cognitivos que usamos para economizar energia mental. Quando um mágico prende sua atenção em uma mão enquanto manipula objetos com a outra, ele está se aproveitando do fato de que sua consciência é seletiva. Você não vê o mundo como ele é, mas como sua mente consegue interpretá-lo com o mínimo de esforço.

Mais inquietante ainda é saber que somos enganados não só por truques externos, mas por nossa própria biologia. Um estudo fascinante revelou que juízes são significativamente mais lenientes logo após o almoço, quando seus níveis de glicose estão estáveis. Sentenças que afetam vidas humanas variam conforme o que foi comido no café da manhã. Hormônios como testosterona e cortisol afetam a percepção de risco, o julgamento moral e a tomada de decisão sem que tenhamos consciência disso. Não somos tão racionais quanto gostamos de acreditar.

A evolução nos equipou com vieses cognitivos que foram úteis quando vivíamos em pequenos grupos tribais, mas que se tornam armadilhas em um mundo hiperconectado. O viés de confirmação, por exemplo, ajudava a consolidar alianças e preservar coesão social. Hoje, ele nos aprisiona em bolhas informacionais que reforçam nossas crenças mesmo diante de evidências contrárias. Cada clique, cada curtida, cada compartilhamento reforça circuitos neurais e alimenta algoritmos que aprenderam a explorar exatamente esses pontos cegos, expressões de A Ilusão que Chamamos de Consciência.

Mas não são apenas nossos instintos individuais que nos enganam. As estruturas sociais construídas por nós também dominam a arte de iludir. Retórica persuasiva, propaganda, manipulação emocional: todas são tecnologias humanas refinadas ao longo de milênios. Quando um político usa gestos calculados, quando um vendedor cria escassez artificial, quando um influenciador projeta uma persona online meticulosamente editada, o que está em jogo é um conhecimento empírico sobre como o cérebro humano processa sinais sociais. A publicidade moderna é neurociência aplicada, desenhada para acionar reações emocionais que passam direto pelo filtro da razão.

O que torna a IA particularmente interessante não é sua suposta capacidade inédita de nos enganar, mas sua habilidade de automatizar e amplificar enganos que sempre estiveram entre nós. Quando um modelo de linguagem gera um texto persuasivo, ele está reproduzindo padrões extraídos de bilhões de interações humanas reais. Em certo sentido, a IA não cria ilusões novas. Ela apenas replica com eficiência as ilusões que já praticamos há séculos uns sobre os outros.

A ironia é que nossa obsessão com o “engano da IA” pode ser, ela mesma, um reflexo dos nossos próprios vieses. Estamos projetando sobre uma tecnologia recente uma capacidade que já reconhecemos, embora relutemos em admitir, nos nossos próprios cérebros, nos nossos relacionamentos, nas nossas instituições. É mais fácil atribuir culpa a uma entidade externa do que encarar o fato de que somos sistemas de percepção imperfeitos, moldando o mundo à nossa volta com base em filtros que não controlamos completamente.

Talvez a verdadeira questão não seja como a IA nos engana, mas como podemos desenvolver consciência mais aguçada sobre os múltiplos níveis em que nossa percepção é distorcida diariamente. Reconhecer essa fragilidade não deve nos paralisar, mas nos tornar intelectualmente mais humildes. Afinal, se conseguimos operar de maneira razoavelmente funcional mesmo sendo enganados o tempo todo por nossos próprios cérebros, A Ilusão que Chamamos de Consciência pode também nos ensinar a navegar com lucidez em um mundo onde os enganos vêm tanto de neurônios quanto de algoritmos.

Na próxima vez que você se impressionar ou se preocupar com uma IA que parece humana, lembre-se de que você está reagindo com um cérebro que já gasta boa parte do seu tempo produzindo a ilusão convincente de que você é uma entidade coerente, estável e racional. O verdadeiro mistério não é como as máquinas nos enganam. É como conseguimos nos enganar com tanta precisão e, ainda assim, chamamos isso de consciência.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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