O Conhecimento Está no Rodapé

Última atualização: 4 de junho de 2025
Tempo de leitura: 5 min

No mundo acadêmico, há um pacto silencioso que sustenta a produção de conhecimento: a citação. Não como mera formalidade, mas como expressão de uma ética coletiva. Todo artigo nasce daquilo que foi dito antes — e carrega em suas notas de rodapé um gesto de humildade intelectual. A ciência, afinal, não é feita de epifanias isoladas, mas de acúmulo, revisão e validação. A revista Nature mostrou recentemente que os artigos mais citados do século XXI não foram os que anunciaram as maiores descobertas, como o bóson de Higgs ou as vacinas de mRNA. Foram os que ofereceram métodos, softwares e práticas replicáveis. Ou seja: o que move o saber não é o ineditismo, mas a utilidade compartilhada. Cita-se quem contribui, quem organiza, quem permite que outros avancem. A citação é a gramática da confiança.

No jornalismo, essa lógica se rompe. A imprensa profissional se orienta pela ideia de independência editorial e pela busca do “furo” — o ineditismo é moeda de prestígio. Referenciar a reportagem do concorrente é quase tabu. E mesmo quando um novo fato é apenas desdobramento de uma pauta anterior, ele é reescrito do zero, como se o passado não importasse. A consequência é a redundância: múltiplos veículos produzem versões ligeiramente distintas da mesma notícia, mas sem se reconhecerem mutuamente. O leitor comum, diante dessa fragmentação, precisa fazer sozinho o trabalho de triangulação — ou confiar em empresas como a Boxnet, que mapeiam e interligam esses discursos. A mídia, ao preservar sua independência, sacrifica a interdependência que torna a informação cumulativa e auditável. Ao contrário da ciência, onde o conhecimento está no rodapé, o jornalismo raramente se constrói sobre o que já foi dito. Prefere reconstituir, recomeçar — como se cada fato precisasse de uma nova moldura.

Nas redes sociais, onde o conhecimento está no rodapé se dissolve de vez. A citação praticamente inexiste — e quando ocorre, é distorcida ou descontextualizada. A viralização não depende de fonte, nem de verificação. Depende de emoção. Um post anônimo pode se tornar verdade coletiva em minutos, impulsionado por compartilhamentos automáticos e pela validação afetiva dos pares. A lógica é outra: não importa o conteúdo, mas a sensação. A confiabilidade não se mede pelo histórico do autor, mas pela ressonância instantânea com as crenças do público. E quanto mais absurda a alegação, maior a chance de engajamento. Nesse ambiente, o (duvidoso) conhecimento não é transmitido. É apenas replicado, sem freios, sem filtros, sem contexto. A cadeia de confiança se rompe — porque não há mais elos. Não há autor, não há fonte, não há responsabilidade.

Comparar esses três mundos — ciência, jornalismo e redes — revela uma sociedade em crise epistemológica. O que está em jogo não é apenas a disseminação de informações falsas. É a desestruturação do próprio ecossistema do saber. A ciência continua rigorosa, mas cada vez mais enclausurada em portais pagos e linguagem inacessível. A mídia busca cliques em vez de profundidade. As redes sociais recompensam ruído, não evidência. E é nesse cenário que surge um quarto ator: a inteligência artificial.

A IA, sobretudo em sua versão generativa, representa uma nova etapa. Um modelo de conhecimento que aprende com tudo — e é julgado justamente por isso. Os grandes modelos de linguagem são treinados sobre milhões de textos, artigos, livros, códigos, imagens. A IA, nesse sentido, é a mais fiel herdeira da lógica da citação. Aprende a partir do que já foi dito, combina padrões, simula estilos, identifica estruturas recorrentes. Mas faz isso em escala industrial. É como se Newton, ao falar em “ombros de gigantes”, estivesse prevendo um sistema capaz de se apoiar sobre todos os gigantes de uma vez, e ainda cruzar suas ideias em tempo real.

E talvez seja isso que incomoda. A IA não esquece, não se distrai, não se perde em vaidades. E enquanto a academia exige décadas para consolidar um método, a IA absorve milhares deles em questão de dias. Enquanto a mídia hesita em reconhecer suas fontes, a IA é construída por elas. Enquanto as redes sociais amplificam emoções, a IA cataloga estruturas. A crítica, no entanto, é feroz: chamam-na de copia-e-cola automatizada, acusam-na de falta de originalidade, denunciam a ausência de ética. Mas esquecem que o conhecimento está no rodapé, que todo conhecimento é reinterpretação. Que toda arte é, de algum modo, citação. Que toda ideia nova já foi um encaixe em uma ideia antiga. O problema, talvez, não esteja na IA — mas no espelho que ela nos devolve. Um espelho que revela como tratamos o saber: com pressa, com descuido, com desatenção.

A IA, longe de destruir o conhecimento, apenas evidencia suas rachaduras. Se ela replica preconceitos, é porque os dados estavam enviesados. Se simula conteúdo raso, é porque o conteúdo disponível assim o era. O que estamos entregando como repositório informacional ao futuro? O que será aprendido por máquinas que se alimentam do que produzimos agora? Em vez de acusar a IA por usar o saber acumulado, deveríamos nos perguntar o que fizemos com esse saber — e por que permitimos que sua base se fragmentasse tanto.

Talvez a inteligência artificial seja, paradoxalmente, a nossa chance de reorganizar o caos. Mas, para isso, ela precisa de fontes confiáveis, sistemas interligados e uma ética da citação que ultrapasse os muros da universidade — porque o conhecimento está no rodapé. Se quisermos que a IA seja uma aliada — e não um sintoma do colapso — precisamos reconfigurar os três mundos que vieram antes dela. A ciência precisa voltar a dialogar. O jornalismo precisa aprender a reconhecer. As redes sociais precisam, ao menos, se responsabilizar pelo que ecoam. Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas o conhecimento, mas a confiança. E nesse novo mundo, quem não cita, inventa. E quem inventa sem base, destrói.

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Marcelo Molnar

Sobre o autor

Marcelo Molnar é sócio-diretor da Boxnet. Trabalhou mais de 18 anos no mercado da TI, atuando nas áreas comercial e marketing. Diretor de conteúdo em diversos projetos de transferência de conhecimento na área da publicidade. Consultor Estratégico de Marketing e Comunicação. Coautor do livro "O Segredo de Ebbinghaus". Criador do conceito ICHM (Índice de Conexão Humana das Marcas) para mensuração do valor das marcas a partir de relações emocionais. Sócio Fundador da Todo Ouvidos, empresa especializada em monitoramento e análises nas redes sociais.

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